Carta do III Encontro de Mulheres Estudantes de São Paulo

 Carta do III Encontro de Mulheres Estudantes de São Paulo
 
Nós, mulheres, reunidas no III Encontro de Mulheres Estudantes de São Paulo nos dias 26 e 27 de março de 2011, reivindicamos a atualidade da luta das mulheres e reafirmamos nosso compromisso com a luta pela superação do patriarcado e do machismo e pela garantia da nossa autonomia.
É necessário compreender a conjuntura que vivemos, e onde se localiza o movimento feminista. Reconhecemos a importância  simbólica da primeira mulher presidenta da república, mas sabemos que isso apenas não basta para mudar a vida das mulheres. Nosso debate parte da compreensão sobre as tarefas e desafios para a luta feminista.
 
Sabemos que o fato de sermos estudantes é fruto da luta de mulheres que vieram antes de nós e conquistaram o direito das mulheres à educação. Mas direito à educação não basta. As mulheres representam hoje 55% dos estudantes universitários, mas ainda é necessário romper preconceitos e discriminações sociais que concentram as mulheres em áreas do saber relacionadas ao que é tradicionalmente considerado feminino. Ao contrário do que querem muitos, não somos apenas corpos que enfeitam a universidade enquanto os homens estudam. Somos seres pensantes, construímos o conhecimento, a economia, a cultura e a sociedade.
A organização permanente das estudantes é fundamental, pois é ela que garante a incorporação das bandeiras feministas na agenda política do movimento estudantil e da universidade. Se há avanços, ainda há muito por fazer: mesmo nos espaços do movimento estudantil persistem situações de machismo e opressão. Os espaços políticos ainda são compostos majoritariamente por homens, e a luta e a militância das mulheres continua sendo colocada em segundo plano.
Nos espaços da universidade são recorrentes o constrangimento moral e o assédio sexual contra as estudantes, em especial durante as festas e atividades de recepção às e aos estudantes ingressantes. Acontecimentos como o desfile das bixetes, o rodeio das gordas, os trotes e as piadas com apelo sexual são lamentáveis e reproduzem a concepção machista da mulher como mero objeto de desejo.
Também nas universidades, o descaso dos governos e reitorias com a assistência estudantil dificulta que as mães estudantes possam exercer seus estudos plenamente, na medida em que não há garantia do direito à moradia, à licença-maternidade e nem creches para as filhas e filhos das estudantes.
A auto-organização das mulheres constrói uma prática feminista que é fundamental para combater todas as expressões do machismo. Organizadas em coletivos feministas e no movimento estudantil, seguiremos em luta para combater a opressão, o assédio e a violência contra as estudantes na vida universitária. 
 
Mas não é só na universidade que as mulheres são oprimidas, e as tarefas e desafios da nossa luta vão, com certeza, para além dos muros da universidade.
A divisão sexual do trabalho que marca nossa sociedade é brutal. Responsabiliza a mulher pelos afazeres domésticos, relacionados à limpeza, à cozinha, ao cuidado e à assistência às crianças, aos idosos e aos doentes; impõe a desvalorização e a sub-remuneração do trabalho feminino; desresponsabiliza o Estado de tarefas coletivas, sobrecarregando as mulheres através da exploração pelo núcleo familiar. Nesse sentido, a luta das mulheres contra o machismo, por autonomia e por igualdade passa fundamentalmente pela resistência frente à precarização do trabalho e dos direitos sociais em geral.
As reivindicações por creche em período integral, pela igualdade salarial entre homens e mulheres, por educação sexual não sexista e por assistência digna à saúde da mulher são bandeiras históricas do movimento feminista que ainda continuam latentes. No estado de São Paulo, estão mais do que evidentes o desmonte do setor público, o aumento do desemprego - ainda mais gritante entre as trabalhadoras - o avanço da privatização, da terceirização e da flexibilização trabalhista, assim como a escassez de políticas para as mulheres.
No âmbito federal, o corte de gastos ocorrido recentemente nas áreas da educação e da saúde afetam as mulheres de forma mais intensa: na medida em que o Estado deixa de garantir a qualidade do serviço público, é sobre os ombros delas que recai a função de amparar os desassistidos e de executar as atividades não cumpridas pelo poder público. Do mesmo modo, a enorme defasagem do salário mínimo em relação ao valor realmente necessário acentua a pobreza em especial das mulheres, pois são elas que se encontram nos postos de trabalho mais precarizados e com menor remuneração. A pobreza tem sexo e cor: para as mulheres negras, essa exploração é ainda maior.
Acompanhamos uma grave ofensiva conservadora em todo o país. Um importante exemplo é como foram tratadas as mais importantes pautas do movimento feminista nas principais candidaturas à presidência: a união civil de pessoas do mesmo sexo, o casamento civil igualitário e o aborto. Este especificamente foi tratado como algo a ser criminalizado ou apenas não debatido.
Em nenhum momento a maternidade é tratada como escolha, direito da mulher e autonomia sobre o próprio corpo. No Plano Nacional de Direitos Humanos III a discussão sobre o aborto foi suprimida, ignorando que esse debate fosse tratado como uma questão de saúde pública. O Acordo Brasil Vaticano não foi debatido e fere a laicidade do Estado, retrocedendo em muitos aspectos, inclusive na luta histórica pela descriminalização do aborto.
As políticas de saúde pública têm grande defasagem em responder às reais demandas das mulheres. A saúde da mulher é restrita ao papel que lhe é delegado: reprodutora. Dessa forma, ignora as diferenças raciais, etárias, de orientação sexual, e a mulher com deficiência. A mulher não é vista como ser que sente desejo ou prazer, mas somente com função de reproduzir.
O transporte público tampouco é pensado para as mulheres. Em São Paulo a luta contra o aumento da passagem em 2011 contou com a presença massiva de estudantes universitários. Essa pauta também pertence às mulheres, pois somos nós as mais atingidas pelo aumento do preço e precarização do transporte, inclusive porque há poucos assentos reservados às gestantes e às mães com crianças de colo, além de ausência de segurança noturna dentro dos trens e nos terminais, o que aumenta os números de violência e estupro.
A violência contra a mulher também continua sendo uma realidade cotidiana, em especial na esfera doméstica. Naturaliza-se a violência psicológica, moral e a agressão física contra as mulheres. A questão da violência contra a mulher pode ser potencializada se, além de mulher, ela for lésbica, negra, pobre, migrante e portadora de deficiência.
A violência específica contra as lésbicas pode ser manifestada nos estupros corretivos, ausência de informação e métodos de proteção contra DSTs, impossibilidade de união estável com direitos plenos, enfim, ausência de políticas públicas específicas. A falta de visibilidade das lésbicas na sociedade corrobora com este cenário de descaso e negligência. Ignorar a existência das lésbicas é cercear nosso direito de lutar por nossa emancipação.
 
Não podemos nos esquecer do que está por vir: a Copa do Mundo em 2014, e as Olimpíadas em 2016. São megaeventos que intensificam as políticas de higienização e de gentrificação presentes nas principais capitais brasileiras, cujas as maiores afetadas serão as mulheres pobres, em uma lógica de fortalecimento do turismo sexual, tráfico de pessoas e despejos.
Para combater todas as formas de opressão e exploração das mulheres é fundamental que as mulheres estejam unidas na luta, disputando a sociedade como um todo, e isso só acontece se houver autonomia em relação a partidos e independência aos governos.
A força das mulheres se mostrou presente nas revoluções do mundo árabe e deve servir de exemplo para todas nós. É com esse espírito rebelde que devemos construir a luta feminista e anti-capitalista.
Para avançarmos nas nossas pautas é necessário a nossa auto-organização, pois só nós, mulheres, podemos ser protagonistas das nossas lutas.  Somente nós somos capazes de superar a opressão que sofremos. Sabemos que será unidas e em luta que vamos conquistar nossa autonomia e liberdade!
SEM FEMINISMO NÃO HÁ SOCIALISMO!
 
 
 
 
Outras propostas:
-Segurança feminina com treinamento específico 24 horas nos campi;
-Incorporação da questão de gênero nos currículos dos cursos de ensino superior;
-Ofensiva de denúncia ao machismo na Universidade e no Movimento Estudantil;
-Liberdade e fomento à produção de conhecimento sobre gênero;
-Incorporação de bandeiras do Movimento Estudantil, que afetam fortemente as mulheres, às pautas do movimento feminista, como 10% do PIB para a educação;
-Construir espaços auto-organizados de mulheres nos encontro do Movimento Estudantil e que não sejam concomitantes a outros espaços do movimento geral;
-Garantir a continuidade do pré-EME SP entendendo ser este um espaço fundamental do Movimento estudantil;
-Que o EME se torne um fórum deliberativo da UNE tendo em vista que as mulheres têm autonomia para decidir e deliberar sobre suas pautas;
-Que as entidades do Movimento Estudantil se incorporem ao calendário unificado do Movimento Feminista:
• 8 de março – dia internacional de luta das mulheres
• 25 de junho – dia de mobilização por uma educação não sexista.
• 29 de agosto – dia da visibilidade lésbica
• 28 de setembro – dia latinoamericano e caribenho de luta pela legalização do aborto
• 17 de outubro – dia de luta contra a pobreza entre as mulheres
• 20 de novembro – dia da consciência negra
• 25 de novembro – dia internacional de combate à violência contra as mulheres.
 
 
São Paulo, 27 de março de 2011